Só falta privatizar nossas casas
CARLOS CHAGAS
BRASÍLIA - Vamos imaginar o cidadão comum, aquele que não agüenta mais pagar impostos, sofre com a prestação da casa própria comprada no subúrbio e protesta contra a perda aquisitiva de seu salário. Já tirou os filhos do colégio particular, vendeu o Fusquinha por conta da alta da gasolina e ignora como saldar os débitos com o cartão de crédito e o cheque especial.
De repente, surge diante dele um desses arrogantes cobradores e propõe a solução: a privatização. Por que o indigitado companheiro não privatiza o quintal, inclusive o galinheiro? Como não vai chegar, o remédio será privatizar a cozinha. Sua mulher não vai gostar na hora de fazer café ou preparar o almoço, pois precisará pedir licença aos novos donos e aguardar a hora de ferver a água, mas outra alternativa não há.
Mesmo assim, não adiantará. Deve ele, então, privatizar a sala e o quarto dos filhos. Mesmo sujeito a ver a filha privatizada junto com os móveis, acaba cedendo. Não demora muito e a família será obrigada a se mudar para o quartinho da empregada, mas privatizar é a solução.
Guardadas as proporções, o País vive o mesmo drama. Sob a chancela do sociólogo, e com a adesão do torneiro-mecânico, privatizaram o subsolo, as telecomunicações, os portos, as rodovias, os bancos, os monopólios ligados à soberania nacional e, agora, avançam na agressão ao próprio território nacional.
Essas tentativas de invasão parecem cíclicas, mas de algumas décadas para cá avançam sobre a Amazônia. Fernando Henrique Cardoso autorizou o arrendamento, por quarenta anos, renováveis por mais quarenta, de quaisquer glebas na região, inclusive nas reservas indígenas. Quem pode se habilitar?
Quem quiser, como o Lula confirmou nos últimos quatro anos. Em especial estrangeiros, empenhados em manter a floresta intocada, como um vasto jardim, misto de botânico e zoológico, à disposição de turistas, cientistas, ONGs, multinacionais e grupos que se interessem por adquiri-la.
Como a demonstrar a veracidade dessa agressão, o secretário do Meio Ambiente do Reino Unido, cujo nome se perderá no lixo da História, acaba de fazer coro com antigos governantes dos países ricos. A exemplo do que pregam e já pregaram George W. Bush, Tony Blair, Margaret Thatcher, Al Gore, Mikail Gorbachev, François Mitterrand e Felipe Gonçalez, entre outros, o gringo defendeu esta semana a privatização da Amazônia.
Aqui para nós, depois de tomarem o quintal, irromperão pela cozinha, a sala e os quartos de nossos filhos. E quando formos todos amontoados no quartinho dos fundos, exigirão que nos retiremos. É a privatização.
Mais perto de 1964
A descoberta do fenômeno não se deve a nenhum sociólogo, mas ao colega aí do lado, Sebastião Nery. Foi ele a alertar pela primeira vez para certas semelhanças entre 1964 e 2008. Não todas, é claro, porque pelo que se saiba não há militares conspirando e nem o presidente Lula empenha-se numa campanha pelas verdadeiras reformas de base, como se empenhava João Goulart.
Naqueles idos, da mesma forma, não havia televisão colorida e podíamos fumar Hollywood sem filtro despojados de maiores sentimentos de culpa, muito menos de virmos a ser, os fumantes, discriminados, proscritos e considerados párias sociais. Pelo contrário, até as companhias de aviação distribuíam para os passageiros carteirinhas com quatro cigarros cada uma.
O problema é que, no resto, o nosso profeta de Jaguaguara acertou em cheio. O clima está muito parecido com as preliminares da "gloriosa". Aí está um governo populista e, mesmo, um pouquinho popular, mas desprezado pela classe média.
A dita sociedade organizada, ou seja, o cidadão comum, cada vez mais se vê envolta em sacrifícios e desilusões, obrigada a pagar impostos sempre maiores, enfrentar a perda do poder aquisitivo de salários e vencimentos, assistir ao aumento dos preços administrados e não administrados e verificar que os mesmos de sempre, ou seja, as elites, locupletam-se e se beneficiam de todos os tipos de favores e benesses concedidos pelo governo.
Mas tem mais. Lá e cá, a simpatia pela pessoa do presidente da República é parecida, assim como a falta de credibilidade neles. Igualam-se Lula e Jango, até mesmo nas origens, ambos guindados ao poder por movimentos sociais poderosos, fruto das mais belas campanhas político-institucionais da História. Um, pela resistência armada em favor da Constituição; outro, através de verdadeira revolução pelo voto, na crista da imensa onda nacional em prol de mudanças estruturais no País.
Ambos, no entanto, ficaram e ficam devendo. Não convenceram sequer todas as parcelas engajadas no peleguismo, de um lado, e no petismo, de outro.
Ontem, como hoje, sentia-se que alguma coisa estava para acontecer. Buscando agradar um determinado segmento social, o fazendeiro desagradava os demais, em rodízio. Atendendo à reivindicação de um determinado grupo organizado, o torneiro-mecânico deixa os outros desalentados e irritados.
Assim, gradativamente, neste e naquele tempo, a sociedade foi e vai passando da esperança à frustração, e desta, à indignação. Por certo que tudo acontece sob o envoltório da propaganda oficial desmedida, na qual muitos confiam, mas desconfiando porque mudanças, mesmo, na vida de cada um, muito poucas. Não será com o bolsa-família que se muda muita coisa.
Queixam-se os empresários, hoje, da absurda carga fiscal e dos juros estratosféricos que os fazem mais pobres, ou menos ricos, como queixavam-se seus antecessores da ação de movimentos grevistas e das ameaças de co-gestão e participação dos empregados no lucro das empresas. De nada adiantou, como de nada adianta, distribuir benesses a estes e àqueles, porque as elites reagem apenas pelo que perdem. Ou deixam de ganhar.
O Congresso limitava-se, como ainda se limita, à luta pelo poder deixado frouxo, registrando-se antes, como agora, a presença de minorias intransigentes em meio a maiorias ávidas de beneficiar-se eleitoral e financeiramente. Os partidos eram e são espectros fantasmagóricos, sempre divididos por dentro, trocando ideologias por interesses.
O Comando Geral dos Trabalhadores radicalizava tanto quanto o MST radicaliza, iludidos ambos com a perspectiva de já se encontrarem no governo e de, logo depois, tornarem-se governo. Na realidade, significavam e significam apenas pretexto para a dominação das elites. Poderão desaparecer hoje, como desapareceram ontem, com um simples piparote por parte daqueles que realmente mandam. E que passaram a dispor, no passado, como hoje começam a dispor, do apoio das maiorias carentes e desiludidas.
Em 1964 as elites encontraram o gato para tirar, com suas patas, as castanhas do fogo. Foram os militares, envenenados pelas falsas ameaças do comunismo, que jamais ameaçou alguém entre nós, por sua fraqueza e sua ignorância olímpica das raízes nacionais.
Em 2008, que estruturas substituiriam os militares, hoje desiludidos, humilhados e sucateados pela falta de sensibilidade de sucessivos governos civis? Com certeza não serão os sindicalistas, com as centrais sindicais destruídas pelo egoísmo de só cuidarem de certas categorias privilegiadas e diante da obrigação de fidelidade ao seu líder tornado neoliberal.
A Igreja? Por ironia, em termos nacionais ela evoluiu bastante, mas vê-se na situação de um mingau quente comido pelas beiradas, através da colher das novas organizações evangélicas, por sua vez muito mais interessadas em cuidar-se do que cuidar do semelhante.
A Justiça? Houve tempo em que a única saída para o Brasil foi entregar todo o poder ao Judiciário, mas agora, apesar de investir truculentamente sobre as atribuições do Legislativo e dos partidos, como explicar greves de desembargadores protestando contra a redução de seus vultosos vencimentos e contra a proibição de nomear parentes para seus gabinetes e suas estruturas?
Também não dá para a universidade, ou seja, a intelectualidade, ocupar espaços que nunca teve. Acresce que de algumas décadas para cá o objetivo dos governos manipulados pelas elites foi desmanchar a universidade pública, desmoralizar professores através de ridículos vencimentos e limitar ao mínimo o debate e a livre criação científica. A evasão de cérebros virou rotina, num processo de ida sem volta, enquanto se limitou o conhecimento por baixo.
Muita gente supõe que fora das elites não haverá salvação. Mas não são elas as responsáveis pela erosão que nos assola? Não trarão, no seu âmago, o germe da própria destruição?
Sobra o quê, meu caro Nery, nesse video-tape de um período que esperávamos jamais voltasse? O que substituirá as carcomidas estruturas a um passo de se dissolverem pela própria natureza? Há um enigma dentro desse mistério, capaz de ser solucionado nos parágrafos acima.
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