sexta-feira, 2 de maio de 2008

QUESTÃO INDÍGENA




Questão indígena - Índios prontos para se alistar. Contrariando declaração aprovada na ONU, Exército brasileiro se prepara para incorporar índios tirió a um pelotão de fronteira no norte do Pará. Comandante da Amazônia desafia acordo assinado pelo Brasil.

Óbidos (PA) - Na terra dos índios Tirió, poucos dominam o português. Nem por isso, a tribo do norte do Pará, quase na fronteira com o Suriname, dispensa tênis, camisetas, brincos e dentes de ouro. As crianças, de Havaianas nos pés e chicletes na boca, também resistem a entoar muitas palavras no idioma nacional. Mas falar português significa hoje, para os tirió, acesso a posições remuneradas e de destaque como professor, agente de saúde e, em breve, soldado do Exército.



Contrariando a Declaração Universal dos Direitos dos Indígenas, o Exército se prepara para incorporar seis tirió no 1º. Pelotão Especial de Fronteira do 2º Batalhão de Infantaria de Selva em Tiriós, distrito de Óbidos, no Pará. Aprovada na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas em setembro do ano passado, com voto favorável do Brasil, a declaração propõe a desmilitarização de terras indígenas.



Os militares fazem questão de deixar clara a posição contrária à resolução. “Enquanto eu for comandante militar, a tropa vai onde for necessário”, avisa o comandante da Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro Pereira. “Eu me assustei. Fiquei preocupado quando vi os termos da declaração”, observou o comandante, durante uma palestra em Marabá em 7 de abril, ao citar a parte do texto que permite aos povos indígenas determinar sua livre condição política. Ele criticou ainda outro trecho, no qual a ONU estabelece que “não se desenvolverão atividades militares nas terras indígenas, a menos que se justifiquem por ameaças graves ao interesse público ou que se faça um acordo com os índios”.



Caso fosse cumprida ao pé da letra, pelo menos quatro pelotões do Exército teriam de fechar as portas e desocupar as áreas onde atuam, em especial na faixa da fronteira no Norte do país, na área de conflito Raposa Serra do Sol, em Roraima. Tiriós, em-bora não seja terra indígena, também seria uma dessas áreas, onde, além da tribo e de tropas do Exército e da Aeronáutica, só há um frei franciscano, uma antropóloga e, às vezes, funcionários da Funasa e da Funai. Para se chegar lá, só há duas formas: avião ou caminhada de seis horas a partir do Suriname.



“Aperreados” - Por isso, ao saber do interesse do Exército em arregimentar jovens de 18 anos para compor a tropa na fronteira com o Suriname, o cacique Tadeu Simétrio Tirió queria escolher os futuros soldados imediatamente. “Quando estamos aperreados, a gente corre para o Exército”, diz, com a ajuda de um tradutor. Ele afirma que pelo menos os militares estão sempre prontos para ajudar, já que, desde setembro do ano passado, não aparece um médico na tribo e os índios, em especial as crianças, sofrem com diarréia e desidratação. Por isso, atrai tantos olhares, a presença dos homens de farda camuflada e fuzis nas mãos na comunidade Missão Nova, sede da tribo dos Tirió.



A admiração e o respeito, contudo, não são garantia do interesse dos índios em se transformar em soldados. De poucas palavras e muita desconfiança, Roberto, 18 anos, e Márcio, 17, não demonstram muito interesse em representar os Tirió no pelotão militar.



Há 15 anos pesquisando os Tirió, a antropóloga da USP Denise Fajardo Grupioni explica que o principal problema da tribo hoje é o isolamento. Os cerca de 900 índios que ficam do lado brasileiro vivem da caça, pesca, conhecem muito pouco do mundo fora da Serra do Tumucumaqui e sofrem com a ausência de assistência em tempo integral. “Eles se sentem muito isolados, mas têm interesse em se profissionalizar e diversificar as atividades. Ir para o Exército tem tudo a ver com a possibilidade de ter uma fonte de renda”, avalia a antropóloga, dizendo que os índios mais velhos se arrependem por não terem se esforçado em aprender o português. O dinheiro é gasto quando visitam parentes no Suriname ou quando alguns embarcam em aviões da FAB rumo a Macapá (AP) ou Belém (PA).



O primeiro passo para um índio compor o pelotão do Exército é dominar o idioma nacional, explica o comandante do 2º Batalhão de Infantaria da Selva, tenente coronel Marcos de Sá Affonso da Costa, responsável pela área. Ele justifica o interesse em contar com tiriós na patrulha oficial da faixa de fronteira argumentando que nada melhor que um homem adaptado e conhecedor de uma área para ajudar a defendê-la. “Apesar de os índios serem os únicos habitantes da região, é uma fronteira seca, que pode ser percorrida a pé. Existe a possibilidade de ser roda de passagem de conexões criminosas (como de tráfico de drogas) terrestre”, observa, ponderando que a incorporação só deve acontecer no próximo ano, quando o pelotão se transformará em vila militar. “Enquanto eu for comandante militar, a tropa vai onde for necessário”. Augusto Heleno Pereira, comandante militar da Amazônia.



Quando o socorro chega atrasado - Durante quatro dias, um bebê tirió agonizou com diarréia e desidratação. O socorro não chegou a tempo. Gian Tirió morreu, aos 18 meses, no mesmo dia em que foi levado num avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para o Hospital da Criança de Macapá (AP). O desespero da mãe, Francilene Tirió, que carregou junto ao peito o filho inconsciente durante toda a viagem, era visível no olhar distante e sofrido. Inconsciente, Gian só entrou no carro da Funasa 30 minutos depois de desembarcar na capital do Amapá, em 11 de abril.



Na semana passada, outras 35 crianças da tribo sofriam com desidratação, três delas haviam sido encaminhadas às pressas para Macapá. Mas a morte de Gian foi o primeiro caso de óbito registrado na aldeia. Na ausência de médicos da Funasa, o atendimento de emergência é dado pelo enfermeiro do pelotão do Exército, sargento Mauro Lima Baía. “Essas doenças são importadas do Suriname. Muitos índios vão visitar parentes lá e voltam mal. Tem muito turistas nas aldeias do Suriname”, argumenta Luzio Katxuyana, agente de saúde, reclamando que ficaram mais de um mês sem receber visitas de técnicos da Funasa. “Há 15 dias estamos sofrendo”, completa o cacique Tadeu Simétrio Tirió.



A diretoria regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) diz que encaminhou informes sobre a situação “gravíssima” dos tirió à direção nacional do órgão e também ao Ministério Público Federal (MPF). Explica ainda que a distância e a dificuldade de acesso impedem o órgão de manter médicos na tribo. Em caso de emergência, aeronaves buscam os índios doentes.



Os tirió reclamam que passam fome. Por serem caçadores tradicionais, não recebem cestas básicas. Mas as chuvas intensas nos últimos meses fizeram as águas dos rios subirem. A caça e a pesca ficaram mais escassas e os índios abandonaram a horta que montaram com o frei cearense Paulo Calixto Cavalcanti, há 39 anos catequizando os tirió.



Com brinco e corrente de ouro, adquiridos no Suriname, Moisés Tirió mostra muito orgulhoso a pele da onça pintada que matou com um único tiro de espingarda. Mas diz que jogou a carne fora, porque não servia para comer. Os menores caçam beija-flores com estilingues. Usam penas para confeccionar artesanato, o resto vira churrasquinho. “Essa fronteira é estável, não existem ameaças. Estamos vigiando, mas a preocupação maior são as ações sociais. É uma área carente”, afirma o general Jeannot Jansen da Silva Filho, que está deixando o comando da Amazônia Oriental para responder pela logística do Exército, em Brasília. (FO). “Essas doenças são importadas do Suriname. Muitos índios vão visitar parentes lá e voltam mal”.

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