domingo, 4 de maio de 2008

Terras Indígenas e a Constituição


Terras indígenas e a constituição *Jarbas Passarinho


Leio que a ONU interpela o Brasil por não ultimar a posse da área indígena Raposa Serra do Sol, demarcada voluntariamente pelo Governo atual, com fronteira viva com a Guiana, existência de fazendas de arroz há muitos anos e até municípios instalados. A demarcação homologada pelo Presidente Lula provocou cizânia entre os próprios índios e revolta dos fazendeiros. Promete dar terras públicas a Roraima, em compensação, mas a questão pode agravar-se, ao tentar a Funai expulsar os não-índios.
A Portaria de n. 580 de 15 de novembro de 1991, por mim assinada e homologada pelo Presidente Fernando Collor, demarcando a terra Ianomâmi, provoca, até hoje, críticas acerbas, mas a origem da demarcação, ao contrário da recente, foi uma sentença judicial. Os críticos ou a desconhecem ou a deturpam. Dois dias depois que assumi o Ministério, a Funai me encaminhou sentença do Meritíssimo Juiz da 7ª Vara Federal, determinando a demarcação da Terra Ianomâmi, em linha contínua, no total de 9.419.108 de hectares. Na década de 1980, garimpeiros atraídos pelo ouro, revelado pelo Projeto Radam, haviam contatado os Ianomâmis. A garimpagem foi desastrosa. A caça desaparecera. Os peixes, o mercúrio os contaminou. Morreram 22% da população indígena, na maioria de gripe e malária. O Brasil era mundialmente acusado de praticar o genocídio dos Ianomâmis. No Governo João Figueiredo, em 8 de janeiro de 1985, baseada em decreto de 1983, a Funai, subordinada ao saudoso Ministro Mário Andreazza, criou o Parque Indígena Yanomami, com superfície aproximadamente em 9.419.108 hectares, interditou-o e proibiu a presença de não-índios. Os garimpeiros, porém, ignoraram a proibição.
Em 15 de março de 1985, iniciou-se o Governo José Sarney. A garimpagem continuou, aumentada a cada dia a crítica da Igreja, sobretudo do CIMI, e a campanha pejorativa das ONGs, de que as mortes eram causadas pela contaminação de variolosos, deliberadamente enviados para as tribos. Roraima, para cuja receita os garimpos contribuíam muito, pleiteou a revogação da área interditada, o que se deu com a edição dos decretos 97.512 a 97.530 de 16 de fevereiro de 1989, com a divisão do Parque Ianomâmi em 19 áreas indígenas distintas, com a superfície reduzida para 2.435.215 hectares, entremeadas de duas Florestas Nacionais, para garimpagem, e do Parque Nacional do Pico da Neblina. Estava revogado o ato de janeiro de 1988. Imediatamente (12 de março de 1989) o Ministério Público recorreu à Justiça Federal, propondo Medida Cautelar contra a União Federal, para manter a decisão governamental anterior. O Juiz da 7ª Vara Federal concedeu liminar. Ouvido, o Governo Sarney não convenceu o magistrado, que deu provimento ao Ministério Público e sentenciou mandando restabelecer o ato anterior. Decidi, preliminarmente, caracterizar a linha contínua, que atingia a fronteira. Sobre isso ouvi Ministros. O Itamaraty não viu inconveniente e opinou pelo cumprimento da sentença. O Exército delegou ao Chefe do Gabinete Militar propor fosse ouvido o Conselho de Defesa. Não era o caso, porque o Conselho de Defesa, presidido pelo Presidente da República, só “opina na utilização (e não na demarcação) de áreas indispensáveis à segurança do território nacional” (Art.91,da Constituição). A Marinha sugeriu que a linha contínua ficasse aquém de 20 km da fronteira, aliás morta e precariamente delimitada. O Art. 231 da Constituição impossibilitava a sugestão da Marinha. Do Consultor Jurídico do meu Ministério, o parecer que pedi quanto à soberania nacional, dizia: “A demarcação ordenada pela Justiça não implica abdicação de qualquer parcela da soberania do Estado sobre as referidas terras, nem restrição ao dever-poder de velar pela sua integridade como componente do território nacional,cuja defesa a Constituição atribui, precipuamente, às Forças Armadas”.Assinei a Portaria e o Presidente Collor a homologou em cumprimento à sentença do magistrado.
A partir daí militares e civis, exacerbados, fizeram críticas alarmistas, desmedidas e injuriosas. Um artigo no JB, do ministro Clóvis Ramalhete - a pedido dos detratores - dizia que dois anos depois (em 1993) a “Nação Yanomami” seria incorporada aos Estados Unidos, por Resolução da ONU, que já estaria em curso, Resolução que o Itamaraty viria a desmentir. “Nação Yanomami” jamais existiu em qualquer documento nosso. Nunca assim a reconhecemos. De resto, o artigo 20 da Constituição, define terra indígena como “um bem da União” e não dos índios. Três vezes os inconformados recorreram ao Supremo, alegando ameaça à soberania nacional. Perderam. Chegaram a omitir uma linha inteira de minha Portaria! Projeto de Decreto Legislativo, para diminuir a área (“muita terra para poucos índios”) foi rejeitado no Senado. Só seria o caso se se tratasse de projeto de colonização, e não de área de posse imemorial regulada nos termos do Art. 231 da Constituição. A decisão, no governo Figueiredo, estava certa, menos para Roraima que perdeu a renda dos garimpos. A soberania nacional continua intocável. O Brasil deixou de ser atacado como genocida e a terra Ianomâmi pertence à União.(Publicado no Estado de Minas de 23 de abril/2008)

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