terça-feira, 6 de janeiro de 2009

INFANTICÍDIO



Infanticídio


Denis Lerrer Rosenfield


O Brasil está sendo tão acometido da sanha do politicamente corretoque o olhar de muitos não consegue ver coisas que acontecem ao nossoredor. Assim, há em curso uma tentativa de resgate de nossa históriaque está escorregando no seu contrário, como quando os indígenas sãovistos segundo a ótica do "bom selvagem", no sentido de Rousseau. Apolítica indigenista aí enraizada, com apoio explícito de movimentosditos sociais, termina por pactuar com comportamentos que atentamdiretamente contra a própria Constituição. Em nome do relativismomoral, da igualdade entre todas as culturas, comportamentos dos maisinusitados, para não dizer bárbaros, são admitidos.Há vários relatos de infanticídios entre as populações indígenas, quesão simplesmente tolerados, se não explicitamente admitidos, em nomeda igualdade entre culturas. As causas podem ser as mais variadas,desde a existência de gêmeos até a escolha de sexo, passando pelosmais distintos motivos. Em terra ianomâmi, tão celebrada como exemplode política indigenista, tudo indica que se trata de uma práticacomum.Observe-se que esses índios são os que vivem mais à parte do contatocom os civilizados, embora em muitas aldeias existam postos da Funaie da Funasa. Habitam um imenso território e, no entanto, vivemsubnutridos, o que é visível à simples observação dos homens e dasmulheres. O argumento de que amplas extensões de terras sãofundamentais para a sua reprodução física parece não se sustentar,dadas as suas condições precárias de vida. A ideia do bom selvagem emcondições idílicas parece ser mais um produto ideológico da Funai, doCimi e dos movimentos sociais em geral.Numa das aldeias, é comum o relato do infanticídio enquanto práticacultural dessas populações. Nas palavras de um interlocutor, matar ounão um recém-nascido é uma "decisão dos pais". Ou seja, cabe ao livre-arbítrio dos pais manter ou não em vida um recém-nascido, não havendonenhuma lei que se sobreponha a essa. Nesse sentido, eles sesituariam fora ou acima da Constituição brasileira, que assegura odireito à vida. Os argumentos apresentados podem ser vários, desde otamanho da roça até o fato de os indivíduos do sexo masculino seremprivilegiados, com a morte consequente de recém-nascidos do sexofeminino. Imaginem se tal prática fosse universalizada, tornando-seválida para todos os brasileiros!Ora, quem sustenta o infanticídio como sendo apenas uma práticacultural compactua, na verdade, com um crime severamente punido pelalegislação brasileira. Os indígenas são, assim, tratados como se nãofossem brasileiros, a lei não se aplicando a eles. Temos aqui umevidente paradoxo: como a Constituição brasileira não se aplicaria aeles, estando suas aldeias situadas em território nacional e sendoauxiliados, e mesmo apoiados, por instituições do Estado? Como podeuma cláusula pétrea ser relativizada dessa maneira?Ainda numa outra aldeia, da mesma tribo, há relatos de que oinfanticídio seria cometido com o conhecimento de missionárias aliinstaladas. As mulheres vão para o mato antes do parto, costumam terseus filhos sozinhas, voltando, depois, sem o recém-nascido. A morteé feita por sufocamento, com a mãe asfixiando a criança no chão, como pé. A situação não poderia ser mais escandalosa, pois esse tipo deconivência contraria frontalmente os princípios do cristianismo e, demodo mais geral, de toda a humanidade. Os princípios mesmos doEvangelho são frontalmente desrespeitados. Como pode uma prática ditacultural se sobrepor a um princípio universal? Salvo se partirmos deuma outra posição, a saber: a inexistência de princípios universais,o que equivaleria a remeter toda a humanidade à barbárie. Por que nãoreintroduzir, então, a antropofagia, prática que foi comum adeterminadas tribos na história brasileira, em nome da "igualdade"entre diferentes culturas?A situação deveria suscitar a indignação moral. Em nome deuma "prática cultural", haveria conivência com o assassinato de recém-nascidos, como se esta prática devesse ser "culturalmente"preservada. Ou ainda, em nome do "estruturalismo", é como sedevêssemos abdicar de nossa capacidade de julgar. Parece, no entanto,haver uma tergiversação geral sobre o assunto, englobando asdiferentes autoridades envolvidas. Trata-se de uma manobrapropriamente política perante a opinião pública brasileira, quedesaprovaria tal prática se dela tivesse conhecimento. Vendem, porém,um outro produto, o de que os indígenas são "bons selvagens", havendouma harmonia natural entre eles, como se o assassinato, por exemplo,fosse fruto do mundo civilizado. Para que possam guardar as suasrespectivas posições de poder, continuam insistindo nessa ideiarousseauniana ao arrepio completo da verdade.A opinião pública condena severamente o infanticídio. Uma menina queteria sido assassinada pelo pai e pela madrasta, atirada de umedifício, ocupou durante semanas o noticiário radiofônico, televisivoe impresso do País, causando indignação geral. Provocou umaverdadeira comoção nacional. Outros casos são também relatados comdetalhes, produzindo uma intensa reação e suscitando fortes emoções.Mesmo criminosos, nos presídios, não compactuam com essa prática,procurando eliminar fisicamente os que realizam tais atos. Opróprio "código" dos criminosos exclui essa prática, por se colocarfora dos parâmetros de qualquer tipo de humanidade. Por que seria elatolerável entre os indígenas? No fundo, o que está em questão, paraaqueles que defendem tais posições ou são omissos em relação a elas,é o medo da perda de suporte junto à opinião pública. Se fossemmostrados coniventes e cúmplices com tal prática, perderiamsustentação e seriam forçados a abdicar de suas posições ideológicase políticas. Eis por que o ocultamento é aqui a regra.Segunda-Feira, 05 de Janeiro de 2009Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.E-mail: denisrosenfield@terra.com.br

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