A ONU finalmente (quase) se mexeu: o plano para o cessar-fogo
Karim Makdisi, Counterpunch, 9-11/1/2009
http://www.counterpunch.org/makdisi01092009.html
Karim Makdisi é professora do Dept. de Estudos Políticos e Administração Pública na American University de Beirute.
Recebe e-mails em karim.makdisi@aub.edu.lb. Escreve de Beirute.
O Conselho de Segurança da ONU (ing. United Nations Security Council, UNSC; port. CSONU) finalmente (quase) reagiu à chacina em Gaza. Ontem à noite foi aprovada a Resolução n. 1860, atrasada, por 14 votos a favor, nenhum contra e uma abstenção, dos EUA. A resolução determina "cessar-fogo imediato, durável e a ser integralmente respeitado, com completa retirada de todas as forças de Israel, de Gaza" e [que se desimpeça completamente] "a provisão e a distribuição de assistência humanitária em Gaza, incluídos aí alimentos, combustível e assistência médica."
Israel ignorou a resolução e, de fato, aumentou os ataques a Gaza, onde o saldo de mortos e feridos já ultrapassa 4.000, sobretudo civis; mais de 1/3, crianças. O Hamás condenou a resolução, por não considerar os interesses dos palestinenses, que não foram ouvidos; Máhmude Abbas, Presidente da Autoridade Palestinense (PA) – única instituição reconhecida internacionalmente como representante da Palestina – festejou a resolução.
Há algumas observações a fazer, mesmo nesse estágio muito inicial da intervenção da ONU:
1) O ensurdecedor silêncio do Conselho de Segurança até ontem – e, sobretudo, o fracasso da intervenção dos membros permanentes, que não levaram Israel a suspender os atos de agressão e as políticas de punição coletiva contra a população civil de Gaza – autorizam a supor que o CSONU dá sinais de estar em conluio com Israel, como já deu sinais, outras vezes, nas muitas guerras que Israel tem promovido, contra o Líbano e contra a Palestina. Uma das versões iniciais da resolução, que a Líbia apresentou, exigindo imediato cessar-fogo e retirada de Israel, de Gaza, foi rejeitada pelos Estados ocidentais e também pelos regimes árabes ditos "moderados".
Deve-se lembrar que o Conselho de Segurança esperou 32 dias antes de aprovar a Resolução n. 1701, depois da invasão ilegal de Israel no Líbano, no verão de 2006, demora que resultou em terrível catástrofe humanitária.
2) Não há muitas dúvidas de que os EUA, os países europeus e os regimes árabes "moderados" adiaram enquanto puderam a aprovação da Resolução; assim, deram a Israel o maior tempo possível para trabalhar na direção dos objetivos da guerra: destruir o movimento de resistência na Palestina.
Como Rashid Khalidi lembra, em artigo de 8/1 no New York Times, Moshe Yaalon, então chefe do Estado-maior do exército de Israel revelou em 2002 as reais intenções de Israel: "Os palestinenses têm de ser convencidos, até os recônditos mais profundos da consciência, que são um povo derrotado." Infelizmente para Israel e seus aliados, não só esse objetivo está longe de ser alcançado, como, também, as ações de Israel têm levado a resultado oposto, e parecem estar galvanizando o espírito de resistência, na Palestina e, de fato, também em outros países árabes.
3) Não há como não ver que as manifestações de massa que eclodem em todo o mundo em solidariedade à população de Gaza, sobretudo no mundo árabe e muçulmano, tiveram papel importante, para apressar o Conselho de Segurança.
Os Estados europeus, eventualmente também os EUA, entenderam que o que de fato passa a estar no centro da mesa de apostas no mundo árabe, não é só o destino de Gaza, mas o destino, também, de regimes árabes "moderados", como, dentre outros, o do Egito. Esses regimes, cuja legitimidade é contestada (por corrupção, em quase todos os casos), começam a enfrentar forte oposição interna e protestos que atingem dimensões não conhecidas (nem desejadas) no mundo árabe. Os poderes ocidentais foram forçados a jogar um osso aos seus aliados "moderados", para que figurassem como defensores dos palestinenses, o que lhes dará algum tempo para negociar suas dificuldades internas.
4) A resolução não menciona o Hamás, em deferência a Israel, que insiste em não reconhecer como interlocutor político legítimo o governo eleito em Gaza, em Jerusalém Leste e na Cisjordânia, o qual os israelenses continuam a definir como "organização terrorista".
5) O texto da Resolução n. 1860 não faz qualquer referência à legislação internacional, às chamadas "leis humanitárias" (portanto, muito menos condena Israel, que rotineiramente desrespeita essas leis), e parece repetir, no preâmbulo e nos artigos operacionais, a narrativa israelense dos fatos (exatamente como a Resolução n. 1701 também adotou a narrativa israelense, em 2006). Assim sendo, o CS praticamente declara, por implicação, que tanto a guerra em curso quanto "o pesado número de baixas entre civis [resultante da guerra]" são resultado "da recusa a estender a vigência do cessar-fogo e manter a calma". Em outras palavras, exatamente como disseram os porta-vozes de Israel e dos EUA, aparentemente sem ironia, os palestinenses estão sendo responsabilizados pela morte... dos palestinenses e pela destruição... dos palestinenses.
A declaração perpetua a versão da propaganda israelense, segundo a qual o Hamás teria quebrado a trégua com Israel – quando já é fato perfeitamente estabelecido que Israel desrespeitou pela primeira vez a trégua, dia 4/11/2008, quando atacou funcionários do Hamás em Gaza e, também, quando descumpriu o acordo firmado, e não levantou o bloqueio contra a população civil da Palestina.
6) A Resolução n. 1860 insiste numa tendência que tem sido favorecida também por alguns poderosos grupos de ativistas de Direitos Humanos, como Anistia Internacional e Human Rights Watch, de considerar como agressões equivalentes situações profundamente diferentes, como o que sofrem populações ocupadas e populações ocupantes, as vítimas e os criminosos no caso de crimes de guerra.
Por exemplo, a Resolução declara que "as populações da Palestina e de Israel devem ser protegidas", como se os civis israelenses enfrentassem hoje chacina comparável à que enfrentam os civis palestinenses. O número de mais de 4.000 mortos e feridos em Gaza é incomparavelmente maior que a dúzia de israelenses (a maioria dos quais soldados); tentar apresentar como equivalentes essas duas situações abissalmente diferentes é moralmente inadmissível, para dizer o mínimo.
7) A Resolução n. 1860 declara que "Condenam-se toda e qualquer violência e hostilidades que visem populações civis e todos os atos de terrorismo." Outra vez, o texto indiretamente acolhe a versão da propaganda de Israel, que se autojustifica, ao promover um completo massacre de civis, alegando um direito de "autodefesa"; e abre caminho para uma eventual defesa de Israel, que exigirá, caso venha a ser acusada de prática de violência excessiva, que se prove que seus atos visaram a atingir deliberadamente civis. Dado que, cada vez que Israel bombardeia uma casa, uma escola da ONU, uma ambulância ou um hospital, imediatamente 'declara' que havia "terroristas" escondidos nos locais bombardeados, ou que foi "erro lamentável", é difícil entender exatamente o que a Resolução condena... se se tratar de ação de Israel. Por outro lado, não se entende a que a resolução se refere, na condenação a "todos os atos de terrorismo".
A Inglaterra, que apresentou a versão depois aprovada da resolução, define o Hamás como "organização terrorista"; assim sendo, pode-se dizer que a resolução pré-condena qualquer ato de resistência do Hamás. Esse tipo de linguagem cifrada, em que o que importa jamais aparece nas linhas, só nas entrelinhas, já é rotina, nos textos das resoluções da ONU, sempre que se discutem questões que envolvam Israel.
8) Por fim, chegamos ao coração real da Resolução, de fato, ao coração do motivo pelo qual Israel não respeitará essa Resolução do Conselho de Segurança e prosseguirá com os ataques-chantagem contra Gaza.
Está lá, no parágrafo que "[o Conselho de Segurança] convoca os Estados-membros a intensificar esforços para prover acordos e garantias, em Gaza, para sustentar um cessar-fogo durável, inclusive com medidas que visem a impedir o tráfico ilegal de armas e munição e assegurar a abertura dos postos de passagem, com base no Acordo sobre Movimentação e Acesso de 2005 entre a Autoridade Palestina e Israel; nesse sentido, acolhe a iniciativa do Egito, e outros esforços regionais e internacionais que estejam sendo planejados."
Na opinião de Israel, falta, aí, explicitar claramente o modo (o "mecanismo", foi a palavra usada nas negociações) como "o tráfico ilegal de armas e munição" será impedido e punido, quando for praticado pela resistência palestinense. Israel entende que esse tipo de fraseado vago, pouco preciso, que se lê na resolução aprovada, implica uma derrota (e recriminação) de seus esforços para interromper as linhas de suprimento para a resistência palestinense.
De fato, embargo semelhante, ao tráfico de armas, contra o Hizbóllah, depois da guerra de 2006, não impediu a resistência libanesa de rearmar-se e reequipar-se, a ponto de estar hoje muito mais bem armada do que em 2006. Por outro lado, a explícita referência à "iniciativa do Egito" é um balde de água fria nas esperanças dos palestinenses de que se venha a alcançar um esforço mais equilibrado de mediação, como poderia acontecer, se a Resolução "acolhesse", explicitamente, também, as iniciativas da Turquia ou do Catar.
Para resumir: como em todos os casos de interferência da ONU, o fraseado nunca importa tanto quanto as relações de poder militar e político, em campo, depois do final da guerra.
O Hamás e toda a resistência palestinense devem continuar a resistir à ocupação israelense, de modo que a própria resistência influencie e passe a determinar a interpretação do texto da Resolução, e devem reivindicar o direito de participar ativamente da formulação de qualquer mecanismo específico relacionado aos pontos de passagem na fronteira – processo que seguirá seu curso político, com Resolução ou sem.
Essa foi a grande lição da guerra do Líbano em 2006, quando o sucesso do Hizbóllah, em campo, na luta contra o exército israelense invasor, impediu que se aprovasse, no Conselho de Segurança, uma versão inicial do documento, fundamentada no cap. VII da Carta das Nações Unidas, pela qual se criaria uma força de paz, à moda das forças da Otan, que seria empurrada para dentro do Líbano, para proteger o exército de Israel. Se a resistência palestinense capitular em Gaza, facilmente a história tomará rumo semelhante, e virão resoluções após resoluções (e mais forças de ocupação, ditas "forças de paz"), que, no tempo, talvez quebrem a espinha dorsal da resistência palestinense.
Espera-se que, como os EUA, também a União Européia se empenhará em dar mais tempo a Israel, para que tente melhorar suas posições na guerra em curso. Fato é que, se já tivesse feito o que está tentando fazer (deter o Hamás), a situação seria mais fácil também para Israel. E nada está mais fácil, hoje, para Israel, do que há duas semanas, quando se decidiu pela guerra. Portanto, Israel continuará a atacar, com selvageria crescente, ainda por algum tempo. A "comunidade internacional" será obrigada a (quase) intervir outras vezes e, sempre, empurrada pela crescente opinião pública, cada vez menos favorável a Israel.
Enquanto isso, sofre a população de Gaza, que já sofreu horror inimaginável, mas que ainda resiste. "Gaza resiste por existir", leu-se essa semana, na imprensa livre. Ao mesmo tempo, continuará crescendo o apoio à Palestina e a oposição a Israel, e a disposição de não se deixar matar, dos palestinenses, e o apoio à Palestina em todo o mundo árabe e, de fato, em todo o planeta.
Ana Echevenguá - advogada ambientalista - coordenadora do programa Eco&Ação -
http://www.ecoeacao.com.br/ - telefone 48 88133380/91343713 - Florianópolis - SC
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