O PROCESSO
08/07/2008
Não sou advogado, mas a vida fez que tivesse algum contato com textos legais e com homens que cultivavam o Direito e não apenas pautavam sua conduta profissional pela leitura dos Códigos. É tendo isso em vista que escrevo as linhas abaixo. Ocorreu-me, ao fazê-lo, que Rui Barbosa foi consultado, certa feita, por advogado ilustre, que lhe perguntava se poderia, tendo em vista seu juramento, defender homem da sociedade carioca de seu tempo acusado (praticamente réu confesso) de homicídio. E Rui lhe respondeu que era seu dever fazê-lo, porque era direito do cidadão ter quem o defendesse da melhor maneira possível.
Poderá parecer estranho a muitos que, depois do artigo anterior sobre o que se passou no Morro da Previdência, eu volte ao assunto. Faço-o movido pelo desejo de colocar as coisas no seu devido lugar, isto é, de fazer justiça.
O processo contra os militares do Exército — Tenente, Sargentos e soldados — que tiveram participação direta ou indireta na morte de três habitantes do Morro da Providência está decorrendo de maneira pouco usual. Aliás, todo o assunto tem tido tratamento igualmente pouco comum, a começar pelo fato de que não se tem notícia de a Polícia Civil do Rio de Janeiro estar empenhada em encontrar os autores materiais do crime, contentando-se, ela, o Ministério Público e a Justiça Federal em acusar, pronunciar e julgar os militares por homicídio, como se eles fossem, de fato, os autores materiais do crime. E como tal, incursos no artigo 121 do Código Penal: “Artigo 121 — Matar alguém”, com todas as qualificações que o Código permite estabelecer para agravar a pena.
Quando se tem presente que a Polícia não descansou até encontrar, num dos morros, entre os traficantes e chefes de quadrilha, os torturadores e assassinos de um jornalista, é de estranhar o silêncio em torno desse caso que abalou a consciência de muitos. Os que estão observando a cena judicial e vêem, pela TV, cenas da inquirição dos réus ficam com a impressão de que o caso está resolvido e os culpados pelo crime, encontrados, estão à espera da justa punição.
O curioso, e, aliás, também pouco comum neste caso, é que foram poucos os que se perguntaram se a acusação e subseqüente pronúncia não decorreram de uma compreensível precipitação do Ministério Público em apresentar resultados à opinião pública. Não se deve pensar, a esta altura, apressadamente, que a pressa do MP tenha sido motivada pelo fato de os acusados serem militares, comandados por um Tenente. Seria, esta hipótese, considerar que basta alguém vestir farda para ser atropelado nos seus direitos. Convém, portanto, atribuir a acusação de homicídio ao desejo de apresentar resultados — do qual compartilharam Polícia, Ministério Público e Justiça Federal.
Há de se perguntar o porquê dessas considerações. A explicação é simples. Ao estabelecer que é crime matar alguém, o Código Penal quer dizer, na melhor das interpretações, que o crime “é a morte de um homem provocada por outro” (vide Código Penal Comentado, edição de Damásio E. de Jesus, reconhecida autoridade no assunto). Ora, nenhum dos acusados participou da execução das vítimas. Apesar (ou talvez por isso mesmo) de ser de 1940 — época em que se procurava fazer leis que fossem sistemáticas, em que uns artigos se ligassem logicamente a outros —, encontra-se no Código Penal a tipificação clara e sem subterfúgios do crime que realmente foi cometido pelos militares acusados: “Artigo 29 — Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Esse é o crime de que os militares podem ser acusados — e, pelo que se noticiou, não foram.
É importante notar que a desqualificação da acusação não favorece imediatamente o Tenente e seus subordinados na operação. Lendo-se com atenção o artigo citado, ver-se-á que o Tenente e os demais acusados poderão ser condenados à mesma pena que se tivessem cometido homicídio. O problema que se coloca, assim, não é a tentativa de desqualificar para reduzir pena, mas é um problema moral, se assim podemos dizer: a sutil diferença que existe em “concorrer com” e “praticar”. É sutil e para muitos sem importância; mas para o Tenente e aqueles que estavam com ele é a distância que vai entre ter tido a intenção de matar ou não. Dirão alguns que é questão que São Pedro julgará na hora de abrir ou fechar a porta do Paraíso; para os acusados a diferença na intenção é a única tábua de salvação a que podem agarrar-se perante sua consciência.
Em seus comentários ao artigo 29, Damásio de Jesus elenca várias situações jurídicas que se podem encontrar no referido texto legal. Discute o “Conceito de participação: Dá-se quando o sujeito, não praticando atos executórios do crime, concorre de qualquer modo para a sua realização”. E acrescenta: “Ele não realiza conduta descrita pelo preceito primário da norma, mas realiza uma atividade que contribui para a formação do delito”. E mais adiante, acrescenta: “Elemento subjetivo: As várias condutas dos partícipes ligados ao fato material pelo nexo da causalidade física não são suficientes para a existência da participação. Imprescindível é o elemento subjetivo, pelo qual cada concorrente tem consciência de contribuir para a realização da obra comum”. E cita, em abono de sua tese do “elemento subjetivo, isto é, consciência”, extensa jurisprudência.
Uma última palavra: chegou-me às mãos texto de General da Reserva reclamando do Exército apoio legal e moral ao Tenente. Não é uma defesa sem maior significado; no fundo, o que S.Sa. reclama é que a Corporação se comporte como tal.
O que distingue a Corporação de outras formas de associação dos homens em sociedade é que, nela, a idéia de solidariedade é um de seus fundamentos: assim como a Corporação exige que seus membros respeitem as normas que regulam a vida de todos, mas, sobretudo, a moral que a distingue das outras associações humanas, ela lhes deve proteção e amparo enquanto não se provar que ultrapassou a linha que define o comportamento contrário à sua moral de Corporação.
O Exército, como as demais Forças, considera-se uma Corporação. E de fato ainda o é. Nada mais natural, portanto, que os Comandos prestem ao Tenente e a seus comandados na ocasião — nesse julgamento na Justiça comum, em que a acusação parece mal colocada, nesse transe do qual dificilmente se recuperarão se, não tendo tido intenção criminosa, não tiverem o benefício do perdão — a assistência jurídica e moral de que necessitam.
permitida a reprodução total ou parcial dos textos desde que citados autor e fonte
http://www.oliveiros.com.br/ie.html
08/07/2008
Não sou advogado, mas a vida fez que tivesse algum contato com textos legais e com homens que cultivavam o Direito e não apenas pautavam sua conduta profissional pela leitura dos Códigos. É tendo isso em vista que escrevo as linhas abaixo. Ocorreu-me, ao fazê-lo, que Rui Barbosa foi consultado, certa feita, por advogado ilustre, que lhe perguntava se poderia, tendo em vista seu juramento, defender homem da sociedade carioca de seu tempo acusado (praticamente réu confesso) de homicídio. E Rui lhe respondeu que era seu dever fazê-lo, porque era direito do cidadão ter quem o defendesse da melhor maneira possível.
Poderá parecer estranho a muitos que, depois do artigo anterior sobre o que se passou no Morro da Previdência, eu volte ao assunto. Faço-o movido pelo desejo de colocar as coisas no seu devido lugar, isto é, de fazer justiça.
O processo contra os militares do Exército — Tenente, Sargentos e soldados — que tiveram participação direta ou indireta na morte de três habitantes do Morro da Providência está decorrendo de maneira pouco usual. Aliás, todo o assunto tem tido tratamento igualmente pouco comum, a começar pelo fato de que não se tem notícia de a Polícia Civil do Rio de Janeiro estar empenhada em encontrar os autores materiais do crime, contentando-se, ela, o Ministério Público e a Justiça Federal em acusar, pronunciar e julgar os militares por homicídio, como se eles fossem, de fato, os autores materiais do crime. E como tal, incursos no artigo 121 do Código Penal: “Artigo 121 — Matar alguém”, com todas as qualificações que o Código permite estabelecer para agravar a pena.
Quando se tem presente que a Polícia não descansou até encontrar, num dos morros, entre os traficantes e chefes de quadrilha, os torturadores e assassinos de um jornalista, é de estranhar o silêncio em torno desse caso que abalou a consciência de muitos. Os que estão observando a cena judicial e vêem, pela TV, cenas da inquirição dos réus ficam com a impressão de que o caso está resolvido e os culpados pelo crime, encontrados, estão à espera da justa punição.
O curioso, e, aliás, também pouco comum neste caso, é que foram poucos os que se perguntaram se a acusação e subseqüente pronúncia não decorreram de uma compreensível precipitação do Ministério Público em apresentar resultados à opinião pública. Não se deve pensar, a esta altura, apressadamente, que a pressa do MP tenha sido motivada pelo fato de os acusados serem militares, comandados por um Tenente. Seria, esta hipótese, considerar que basta alguém vestir farda para ser atropelado nos seus direitos. Convém, portanto, atribuir a acusação de homicídio ao desejo de apresentar resultados — do qual compartilharam Polícia, Ministério Público e Justiça Federal.
Há de se perguntar o porquê dessas considerações. A explicação é simples. Ao estabelecer que é crime matar alguém, o Código Penal quer dizer, na melhor das interpretações, que o crime “é a morte de um homem provocada por outro” (vide Código Penal Comentado, edição de Damásio E. de Jesus, reconhecida autoridade no assunto). Ora, nenhum dos acusados participou da execução das vítimas. Apesar (ou talvez por isso mesmo) de ser de 1940 — época em que se procurava fazer leis que fossem sistemáticas, em que uns artigos se ligassem logicamente a outros —, encontra-se no Código Penal a tipificação clara e sem subterfúgios do crime que realmente foi cometido pelos militares acusados: “Artigo 29 — Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Esse é o crime de que os militares podem ser acusados — e, pelo que se noticiou, não foram.
É importante notar que a desqualificação da acusação não favorece imediatamente o Tenente e seus subordinados na operação. Lendo-se com atenção o artigo citado, ver-se-á que o Tenente e os demais acusados poderão ser condenados à mesma pena que se tivessem cometido homicídio. O problema que se coloca, assim, não é a tentativa de desqualificar para reduzir pena, mas é um problema moral, se assim podemos dizer: a sutil diferença que existe em “concorrer com” e “praticar”. É sutil e para muitos sem importância; mas para o Tenente e aqueles que estavam com ele é a distância que vai entre ter tido a intenção de matar ou não. Dirão alguns que é questão que São Pedro julgará na hora de abrir ou fechar a porta do Paraíso; para os acusados a diferença na intenção é a única tábua de salvação a que podem agarrar-se perante sua consciência.
Em seus comentários ao artigo 29, Damásio de Jesus elenca várias situações jurídicas que se podem encontrar no referido texto legal. Discute o “Conceito de participação: Dá-se quando o sujeito, não praticando atos executórios do crime, concorre de qualquer modo para a sua realização”. E acrescenta: “Ele não realiza conduta descrita pelo preceito primário da norma, mas realiza uma atividade que contribui para a formação do delito”. E mais adiante, acrescenta: “Elemento subjetivo: As várias condutas dos partícipes ligados ao fato material pelo nexo da causalidade física não são suficientes para a existência da participação. Imprescindível é o elemento subjetivo, pelo qual cada concorrente tem consciência de contribuir para a realização da obra comum”. E cita, em abono de sua tese do “elemento subjetivo, isto é, consciência”, extensa jurisprudência.
Uma última palavra: chegou-me às mãos texto de General da Reserva reclamando do Exército apoio legal e moral ao Tenente. Não é uma defesa sem maior significado; no fundo, o que S.Sa. reclama é que a Corporação se comporte como tal.
O que distingue a Corporação de outras formas de associação dos homens em sociedade é que, nela, a idéia de solidariedade é um de seus fundamentos: assim como a Corporação exige que seus membros respeitem as normas que regulam a vida de todos, mas, sobretudo, a moral que a distingue das outras associações humanas, ela lhes deve proteção e amparo enquanto não se provar que ultrapassou a linha que define o comportamento contrário à sua moral de Corporação.
O Exército, como as demais Forças, considera-se uma Corporação. E de fato ainda o é. Nada mais natural, portanto, que os Comandos prestem ao Tenente e a seus comandados na ocasião — nesse julgamento na Justiça comum, em que a acusação parece mal colocada, nesse transe do qual dificilmente se recuperarão se, não tendo tido intenção criminosa, não tiverem o benefício do perdão — a assistência jurídica e moral de que necessitam.
permitida a reprodução total ou parcial dos textos desde que citados autor e fonte
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