Recebi do meu amigo e mestre Rui a notícia que um general havia feito um amargo pronunciamento, por ocasião da sua despedida do serviço ativo. Fiz a minha caminhada diária com isso na cabeça, pensando em se tratar de mais um daqueles que só resolvem falar quando não tem mais poder para agir.
O mestre Rui me passou uma cópia que, à medida que eu lia, sentia que a primeira impressão estava equivocada. Começava a se avivar na minha cabeça a figura do capitão Giovanni Drogo, a figura central do excelente “O deserto dos tártaros”, de Dino Buzzati.
Desde que li esse livro, quando ainda professor do Colégio Militar de Porto Alegre - o que já faz mais de 20 anos-, é que vejo no capitão Drogo o retrato do oficial brasileiro, agora personificado neste brilhante oficial.
O livro, escrito antes da Segunda Guerra Mundial, conta a desventura do oficial Giovanni Drogo, o qual, aos vinte anos, é nomeado, em seu primeiro posto, para o forte Bastiani, que se ergue imponente e solitário às margens abandonadas do “deserto tártaro”. Drogo, que espera ficar ali poucos meses, aguardando uma transferência, vê a vida transcorrer sem que sua razão de ser se realize: “transformar-se num soldado verdadeiro, conhecer a glória de participar de uma guerra que, tudo indica, não vai acontecer....".
No romance, o jovem tenente Giovanni Drogo, chega numa manhã de setembro ao seu primeiro posto militar: o Forte Bastiani, para o que deveria ser uma curta temporada de quatro meses e que termina sendo a história de uma vida frustrada. O jovem tenente Drogo, preso de uma angústia indefinível, quer voltar a sua cidade próxima, chegando mesmo a participar de uma ridícula audiência para transferência, sem êxito; porque há algo indefínivel que o força a ficar. Drogo tinha um sonho, sim, mas nada fez de concreto para realizá-lo.
O sonho de um ideal de heroísmo militar, de uma carreira e uma vida inteira dedicada à caserna é dissipado com um dia-a-dia rotineiro – em meio à disciplina e as atividades do quartel – do refeitório ao jogo de cartas e de xadrez etc.
E a rotina no forte Bastiani o retém até que a velhice o capture, impotente para reagir ao inimigo real, de forma mais intensa e devastadora do que o invasor que chega: a vida que não se realiza.
O Deserto é o romance de um jovem oficial que passa a vida inteira, frustrado, numa fortaleza de fronteira, esperando o ataque de inimigos que talvez não existam. De um personagem em sua eterna vigília na fortaleza, à espera de um ataque que traga honra e glória.
Este livro, lido há mais de vinte anos, marcou-me muito e traços dele podem ser notados ao longo de tudo que escrevi sobre o papel que nós, militares, deveríamos assumir no pós-regime militar. Como disse um crítico: “O Deserto dos Tártaros é um livro para ou te fazer mudar de vida ou para abandonar essa, dada a profundidade do tema tratado”. Trata-se de uma aguda reflexão sobre a inutilidade do poder.
“Afinal, Buzzati nos conta um pouco da vida de todos nós. Você não tem a impressão que, às vezes, está esperando algo acontecer para mudar de vida? Que esse algo está ali, logo ali, virando a esquina, mas você nunca chega à esquina? E que, na verdade, você até sabe disso, mas não quer admitir, que você é o único responsável pelas mudanças?”, continua. Essa a grande lição deste magnífico livro: você é o único responsável pelas mudanças!
De uma crítica, das muitas que colecionei sobre o livro: “O final do livro emociona os que acompanham toda a vida de Drogo dedicada ao forte. De certa forma nos remete aos dias atuais em que muitos se dedicam obstinadamente a objetivos ilusórios, passam sua juventude lutando por um sonho e deixam de viver a vida verdadeiramente. Depois da leitura podemos nos questionar: o que ando fazendo da minha? Pelo quê ando lutando? Em pleno século XXI, se ainda não temos respostas, pelo menos conseguir formular mais claramente nossas perguntas...”.
Assim como Drogo, o jovem Tenente Peret, tinha um sonho. “A formação da minha geração foi pautada pela constante preparação para o combate. Víamos a possibilidade de emprego assim que saíssemos da Academia”, disse ele na sua despedida.
Uma espécie de vaidade militar, misturada ao desejo de uma carreira heróica, e ao fascínio impressionante pelas “terras do Norte”, pelo deserto dos Tártaros - selvagem e desolado – molda uma espécie de areia movediça em que o personagem se afunda, lenta e progressivamente, até ao final nada heróico. Tudo conspira para que Drogo fique de olho voltado para o deserto, de onde pode partir o fato que mudará sua vida.
O fascínio impressionante pelas “terras do Norte”, um fascínio pelas guerras dos outros cujos inimigos e cenários eram e são bem diferentes dos nossos. “Testemunha ocular do planejamento estratégico militar dos EUA, antes e depois do 11 Set 2001. Vi um fantástico estado de prontidão para a guerra”, relembra o general sobre a sua primeira missão nos USA.
Eu tentei fazer com que não nos transformássemos em uma fábrica de Drogos, como o nosso general Peret. Um desperdício. Uma geração perdida.
Em 1991, fui convidado para fazer uma conferência na IX Conferência Continental da Associação Americana de Juristas, precursor do Fórum Social Mundial: coronel recém punido por entrevista no JB, achavam que estaria ali uma oportunidade para “bater nos milicos”.
Defendi um novo papel, ajustado às nossas demandas e recursos. Mostrei que não tínhamos os bilhões que o Saddam Hussein havia gastado para montar um exército que acabava de ser triturado na Guerra do Golfo, mas que nada nos impedia de sermos astutos.
Aquela poderosa máquina de guerra dos Estados Unidos dependia da opinião pública americana, dependia dos contribuintes para se mover. Bastaria que não déssemos razões para que usassem desculpas para fincar o pé nas nossas imensas riquezas minerais, escasseadas com as incertezas do desmanche da URSS.
Meio ambiente, índios e narcotráfico, três razões que poderiam sensibilizar os contribuintes americanos a autorizar aventuras em nosso território. Bastavam políticas inteligentes nessas três áreas.
O resto seria se dedicar ao nosso grande inimigo: a miséria. Evitar que se transformasse em combustível para agitação social e para o surgimento desses que aí estão. Em vez de armamentos modernos, preconizava o emprego da política do “forte apache”, da idéia dos pólos do general Rodrigo Otávio, da ocupação dos bolsões de miséria. Lembro-me que quase fui linchado na tal conferência. Chegaram à conclusão de que eu estava sugerindo abortar movimentos como o dos sem-terra. Acabar com as razões que as ONGs alardeavam pelo mundo para pressionar pela demarcação de reservas indígenas. Acabar com a massa de manobra que a Esquerda disputava com traficantes nas favelas.
Desnecessário provar que teríamos feito uma revolução, a revolução que não fizemos nas décadas anteriores.
Por tudo isso, eu lamento ver um potencial como o desse general ser desperdiçado. Uma geração desperdiçada na “eterna vigília na fortaleza, à espera de um ataque que traga honra e glória”. O sonho de um exército profissional, sem missão, sem recursos para aparelhar e sem uma política para manter esses profissionais.
No fundo, fica aquela frase do crítico citado lá no início, a tocar a consciência de todos nós: “E que, na verdade, você até sabe disso, mas não quer admitir, que você é o único responsável pelas mudanças?”.
Péricles da Cunha
O mestre Rui me passou uma cópia que, à medida que eu lia, sentia que a primeira impressão estava equivocada. Começava a se avivar na minha cabeça a figura do capitão Giovanni Drogo, a figura central do excelente “O deserto dos tártaros”, de Dino Buzzati.
Desde que li esse livro, quando ainda professor do Colégio Militar de Porto Alegre - o que já faz mais de 20 anos-, é que vejo no capitão Drogo o retrato do oficial brasileiro, agora personificado neste brilhante oficial.
O livro, escrito antes da Segunda Guerra Mundial, conta a desventura do oficial Giovanni Drogo, o qual, aos vinte anos, é nomeado, em seu primeiro posto, para o forte Bastiani, que se ergue imponente e solitário às margens abandonadas do “deserto tártaro”. Drogo, que espera ficar ali poucos meses, aguardando uma transferência, vê a vida transcorrer sem que sua razão de ser se realize: “transformar-se num soldado verdadeiro, conhecer a glória de participar de uma guerra que, tudo indica, não vai acontecer....".
No romance, o jovem tenente Giovanni Drogo, chega numa manhã de setembro ao seu primeiro posto militar: o Forte Bastiani, para o que deveria ser uma curta temporada de quatro meses e que termina sendo a história de uma vida frustrada. O jovem tenente Drogo, preso de uma angústia indefinível, quer voltar a sua cidade próxima, chegando mesmo a participar de uma ridícula audiência para transferência, sem êxito; porque há algo indefínivel que o força a ficar. Drogo tinha um sonho, sim, mas nada fez de concreto para realizá-lo.
O sonho de um ideal de heroísmo militar, de uma carreira e uma vida inteira dedicada à caserna é dissipado com um dia-a-dia rotineiro – em meio à disciplina e as atividades do quartel – do refeitório ao jogo de cartas e de xadrez etc.
E a rotina no forte Bastiani o retém até que a velhice o capture, impotente para reagir ao inimigo real, de forma mais intensa e devastadora do que o invasor que chega: a vida que não se realiza.
O Deserto é o romance de um jovem oficial que passa a vida inteira, frustrado, numa fortaleza de fronteira, esperando o ataque de inimigos que talvez não existam. De um personagem em sua eterna vigília na fortaleza, à espera de um ataque que traga honra e glória.
Este livro, lido há mais de vinte anos, marcou-me muito e traços dele podem ser notados ao longo de tudo que escrevi sobre o papel que nós, militares, deveríamos assumir no pós-regime militar. Como disse um crítico: “O Deserto dos Tártaros é um livro para ou te fazer mudar de vida ou para abandonar essa, dada a profundidade do tema tratado”. Trata-se de uma aguda reflexão sobre a inutilidade do poder.
“Afinal, Buzzati nos conta um pouco da vida de todos nós. Você não tem a impressão que, às vezes, está esperando algo acontecer para mudar de vida? Que esse algo está ali, logo ali, virando a esquina, mas você nunca chega à esquina? E que, na verdade, você até sabe disso, mas não quer admitir, que você é o único responsável pelas mudanças?”, continua. Essa a grande lição deste magnífico livro: você é o único responsável pelas mudanças!
De uma crítica, das muitas que colecionei sobre o livro: “O final do livro emociona os que acompanham toda a vida de Drogo dedicada ao forte. De certa forma nos remete aos dias atuais em que muitos se dedicam obstinadamente a objetivos ilusórios, passam sua juventude lutando por um sonho e deixam de viver a vida verdadeiramente. Depois da leitura podemos nos questionar: o que ando fazendo da minha? Pelo quê ando lutando? Em pleno século XXI, se ainda não temos respostas, pelo menos conseguir formular mais claramente nossas perguntas...”.
Assim como Drogo, o jovem Tenente Peret, tinha um sonho. “A formação da minha geração foi pautada pela constante preparação para o combate. Víamos a possibilidade de emprego assim que saíssemos da Academia”, disse ele na sua despedida.
Uma espécie de vaidade militar, misturada ao desejo de uma carreira heróica, e ao fascínio impressionante pelas “terras do Norte”, pelo deserto dos Tártaros - selvagem e desolado – molda uma espécie de areia movediça em que o personagem se afunda, lenta e progressivamente, até ao final nada heróico. Tudo conspira para que Drogo fique de olho voltado para o deserto, de onde pode partir o fato que mudará sua vida.
O fascínio impressionante pelas “terras do Norte”, um fascínio pelas guerras dos outros cujos inimigos e cenários eram e são bem diferentes dos nossos. “Testemunha ocular do planejamento estratégico militar dos EUA, antes e depois do 11 Set 2001. Vi um fantástico estado de prontidão para a guerra”, relembra o general sobre a sua primeira missão nos USA.
Eu tentei fazer com que não nos transformássemos em uma fábrica de Drogos, como o nosso general Peret. Um desperdício. Uma geração perdida.
Em 1991, fui convidado para fazer uma conferência na IX Conferência Continental da Associação Americana de Juristas, precursor do Fórum Social Mundial: coronel recém punido por entrevista no JB, achavam que estaria ali uma oportunidade para “bater nos milicos”.
Defendi um novo papel, ajustado às nossas demandas e recursos. Mostrei que não tínhamos os bilhões que o Saddam Hussein havia gastado para montar um exército que acabava de ser triturado na Guerra do Golfo, mas que nada nos impedia de sermos astutos.
Aquela poderosa máquina de guerra dos Estados Unidos dependia da opinião pública americana, dependia dos contribuintes para se mover. Bastaria que não déssemos razões para que usassem desculpas para fincar o pé nas nossas imensas riquezas minerais, escasseadas com as incertezas do desmanche da URSS.
Meio ambiente, índios e narcotráfico, três razões que poderiam sensibilizar os contribuintes americanos a autorizar aventuras em nosso território. Bastavam políticas inteligentes nessas três áreas.
O resto seria se dedicar ao nosso grande inimigo: a miséria. Evitar que se transformasse em combustível para agitação social e para o surgimento desses que aí estão. Em vez de armamentos modernos, preconizava o emprego da política do “forte apache”, da idéia dos pólos do general Rodrigo Otávio, da ocupação dos bolsões de miséria. Lembro-me que quase fui linchado na tal conferência. Chegaram à conclusão de que eu estava sugerindo abortar movimentos como o dos sem-terra. Acabar com as razões que as ONGs alardeavam pelo mundo para pressionar pela demarcação de reservas indígenas. Acabar com a massa de manobra que a Esquerda disputava com traficantes nas favelas.
Desnecessário provar que teríamos feito uma revolução, a revolução que não fizemos nas décadas anteriores.
Por tudo isso, eu lamento ver um potencial como o desse general ser desperdiçado. Uma geração desperdiçada na “eterna vigília na fortaleza, à espera de um ataque que traga honra e glória”. O sonho de um exército profissional, sem missão, sem recursos para aparelhar e sem uma política para manter esses profissionais.
No fundo, fica aquela frase do crítico citado lá no início, a tocar a consciência de todos nós: “E que, na verdade, você até sabe disso, mas não quer admitir, que você é o único responsável pelas mudanças?”.
Péricles da Cunha
Um comentário:
Excelente texto!
Você é muito bom, parabéns! Se me permite, postarei seu texto, com as referências, é claro, em meu próprio blogue.
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