10/10/2008
Luís Brasilino, da Redação
“Bancos e monopólios continuam mandando”No dia 3, o Congresso dos Estados Unidos aprovou e o presidente George W. Bush sancionou um pacote de 850 bilhões de dólares de socorro às instituições financeiras afetadas pela crise. A medida, porém, não acalmou os mercados que vivem dias turbulentos. Desde o início do mês até o dia 7 (data de fechamento desta edição), o índice Dow Jones, que mede as ações negociadas na Bolsa de Valores de Nova York, acumulou queda de 13%. No Brasil, os abalos foram ainda mais fortes. Entre os dias 2 e 7, a Bovespa sofreu uma perda de 19,4%.
Com isso, perdem força as análises que sustentam que o país está blindado contra a crise. Para o economista Adriano Benayon, não há nenhuma possibilidade de o “colapso financeiro”, como prefere, não afetar o capitalismo brasileiro. Nesta entrevista sobre a conjuntura econômica, o professor da Universidade de Brasília (UnB) analisa ainda os motivos da crise e afirma que ela já extrapolou a esfera financeira e está atingindo o setor produtivo.
Brasil de Fato – "Quebradeira geral", "caos" etc. Assim, a imprensa corporativa vem noticiando a queda das Bolsas de valores em todo o mundo e, especialmente, no Brasil. Por outro lado, o cotidiano dos brasileiros ainda não foi alterado e poucas pessoas parecem estar cientes desse "caos". Enfim, como (ou quando) a crise financeira afeta a economia familiar?
Adriano Benayon – A imprensa corporativa ocupa-se demais das Bolsas e pouco de coisas mais importantes para a economia. As Bolsas estão registrando quedas expressivas nas ações, e isso não vai parar aí. Mas quebradeira mesmo é com os bancos, financeiras e seguradoras.
Não chamo de crise o que está ocorrendo, porque são crises sucessivas formando o colapso financeiro em curso que se amplia e aprofunda. Os que fazem aplicações já têm sofrido perdas, não só em ações, mas também em outros títulos. Além disso, esse colapso já contaminou a economia real nos EUA e na maior parte dos países da Europa. Essa seqüência certamente ocorrerá também no Brasil.
A crise, então, já atingiu o setor produtivo?
Como frisei, o colapso financeiro atingiu o setor produtivo em muitos países e de modo sério. É questão de tempo isso se agravar, inclusive no Brasil. As bolhas financeiras acabam rompendo-se, como as formadas por títulos com conexão cada vez mais longínqua (derivativos) com os ativos imobiliários, fiduciários, cartões, títulos de crédito, opções e futuros de ações, de commodities etc.
Começa a haver queda de renda real dos devedores, mesmo porque a concentração econômica leva a criar quantidades colossais de ativos financeiros e mais ainda de derivativos supostamente lastreados nesses ativos, enquanto que a base real da economia, espelhada, por exemplo, nos salários permanece praticamente estagnada.
Intensificando-se as inadimplências, o crédito encolhe, bancos e financeiras vão ficando com ativos sem retorno, tentam passá-los adiante e não conseguem. Muitos e cada vez mais vão tendo que escriturar prejuízos, vem a corrida aos depósitos e por aí vai. É claro que, nessa dinâmica para baixo, o setor produtivo sofre tanto por causa da queda da procura nos mercados de bens e de serviços, como por dificuldades e custos mais altos para o crédito. O aperto do crédito atinge tanto consumidores como empresas produtoras de bens e de serviços. Nesse contexto, as cotações da grande maioria das ações de empresas caem e esse é mais um fator de perda de patrimônio das pessoas e mais um fator de retração da procura.
Entretanto, professor, em entrevista ao Brasil de Fato (edição 292), o economista Nildo Ouriques, da Universidade Federal de Santa Catarina, afirmou que a crise não afetou o lucro do setor produtivo estadunidense, pois as transnacionais estão repatriando dividendos da periferia capitalista. O senhor discorda?
Provavelmente Ouriques está reportando algo correto, mas é uma afirmação genérica demais. Algumas transnacionais certamente já vão lucrar menos em função da retração nos EUA e na Europa. Além disso, dentro de algum tempo, haverá também menos ganhos para enviar da periferia (nem digo repatriar, porque elas ganham na periferia infinitamente mais do que nelas investiram).
O Congresso estadunidense finalmente aprovou o pacote (que havia sido rejeitado pela Câmara no dia 29 de setembro), agora de 850 bilhões de dólares (antes eram 700 bilhões de dólares, mas na votação do Senado, no dia 1º, foram incluídos outros 150 bilhões em isenções fiscais), de socorro aos bancos, uma forma de socializar as perdas com os contribuintes. Apesar disso, o senhor acredita que esse pacote é necessário ou, mais ainda, pode ser benéfico para os trabalhadores?
De forma nenhuma. Os analistas independentes e competentes nos Estados Unidos e na Europa têm qualificado esse pacote como bandalheira. Os bancos beneficiados são grandes doadores das campanhas de ambos os candidatos à presidência [Barack Obama e John McCain], os quais recomendaram a seus partidos a aprovação no Congresso. O secretário do Tesouro [Henry Paulson, o autor do pacote,] é ex-sócio diretor de um deles, o Goldman Sachs.
Penso que o pacote é ruim para a economia dos Estados Unidos e para a economia mundial. Claro que é pior ainda para os trabalhadores. Ele apenas livra a cara de alguns banqueiros que abusaram de jogadas gananciosas, ganharam centenas de bilhões de dólares com essas jogadas e não vão ter que reparar o estrago que causaram.
Ele faz com que o governo dos EUA compre títulos sem valor ou de escasso valor para limpar os balanços de bancos e financeiras atolados nesses títulos, cuja manutenção nas suas carteiras significa a bancarrota. Se houvesse democracia nos EUA, essas instituições teriam que passar para o controle de interventores do Estado e os recursos do contribuinte seriam usados na aquisição de ações delas bem desvalorizadas, como já ocorre em função dos maus negócios (agora) para elas.
Outra coisa. Somente os ativos podres do setor imobiliário nos EUA são estimados em 7 trilhões de dólares, de modo que o tal pacote pode cobrir só um pouco mais de 10% dos rombos. Além disso, se se incluir os demais ativos com grande potencial de virar pó, a conta poderá atingir mais de 100 trilhões de dólares. Para que os leitores tenham idéia do problema, o valor nominal dos derivativos, em dólares e euros, principalmente, passa de 500 trilhões de dólares.
Portanto, o que estão fazendo é jogar mais lenha na fogueira da inflação, sem resolver nada na economia produtiva, pois não é aí que estão investindo. O sistema concentrador, que comanda a política econômica em quase todos os países do mundo, abusou das ideologias econômicas do tipo neoliberalismo, globalização, desregulamentação, Estado mínimo etc.
Agora recorre à intervenção do Estado, porque controla discricionariamente o Estado (malgrado a aparência de eleições presidenciais, votações no Congresso etc.). Aí surge a usual louvação infundada ao keynesianismo, uma doutrina que, como mostrou [o economista e ex-senador, falecido em 2003] Lauro Campos, preconiza guerras de grande porte, com mobilização de muitos soldados (como a 2ª Guerra Mundial), para sair da depressão econômica.
O economista Reinaldo Gonçalves, em entrevista ao Correio da Cidadania, apóia o pacote do governo dos Estados Unidos, porque entende que ele procura "travar uma crise financeira que abrange todo o mundo", oferecendo recursos para estabilizar as empresas e bancos envolvidos. O que o senhor acha dessa posição?
Mantendo o que afirmei na resposta anterior, creio que, nesse ponto, o excelente economista Reinaldo Gonçalves não está bem informado.
Existe alguma possibilidade de uma crise nos Estados Unidos não afetar o capitalismo brasileiro?
A meu ver, nenhuma.
Os fundamentos da economia brasileira (reservas) são realmente sólidos ou o Brasil continua tão vulnerável quanto antes?
Continua tão vulnerável quanto antes. Basta dizer que, mesmo antes de o colapso financeiro mundial não poder ser mais escondido, o déficit de transações correntes do Brasil com o exterior já era altíssimo.
O mercado interno brasileiro pode absorver as perdas do setor primário-exportador?
Isso só me parece possível mediante uma mudança completa de modelo econômico, com o Estado fortalecendo empresas médias e pequenas e acabando com os brutais subsídios em favor de transnacionais concentradoras, que controlam os principais e quase todos os setores da indústria, sem falar no agronegócio.
O governo Lula tem propagandeado uma política de comércio exterior que procura reduzir a dependência do Brasil com relação aos Estados Unidos, ao passo que estimula trocas com países do "Sul". Até que ponto isso é verdade? Essa mudança pode proteger o país da crise estadunidense?
Sob o atual modelo, a orientação do comércio exterior do Brasil depende mais das transnacionais e de algumas outras empresas concentradoras do que da política econômica do governo, mesmo porque esta é talhada segundo os interesses desses grupos dominantes na economia.
A política econômica do governo atual (de juros altos, liberalização financeira, câmbio flexível e superávit primário elevado) ajuda ou piora as condições do país nesta hora de crise?
Não tem feito outra coisa até hoje senão piorar as condições do país. Claro que sob conjuntura mundial adversa o dano vai ser exponenciado.
O senhor acredita que, para o Brasil, essa crise significa uma oportunidade para alcançar um desenvolvimento mais independente?
Acredito que ela oferece oportunidade preciosa ao Brasil de buscar o desenvolvimento independente (sem o comparativo, porque, primeiro, o modelo econômico é radicalmente dependente, segundo, embora haja algum crescimento, não há desenvolvimento real).
Por que?
Porque, nessa situação, pode-se entender melhor que convém desatrelar-se da economia mundial controlada por oligarquias de potências hegemônicas, as quais, de resto, controlam também a economia brasileira em sua atual estrutura.
A Revolução de 1930 foi uma resposta ao anterior grande colapso econômico mundial. Sua seqüência, embora só conseguisse autonomia parcial, foi grandemente positiva e as lições dessa experiência devem ser aproveitadas, inclusive no sentido de não repetir erros.
Adriano Benayon é formado em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutor em economia pela Universidade de Hamburgo (Alemanha). É diplomata de carreira, tendo trabalhado na Alemanha, Bulgária, Estados Unidos, Holanda e México, além de no próprio Itamaraty. Foi professor da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto Rio Branco e é consultor na área econômica da Câmara e do Senado, além de ser autor de “Globalização versus Desenvolvimento”, Editora Escrituras.