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quinta-feira, 18 de junho de 2009

QUE FALTA QUE FAZ UM VERDADEIRO S N I


Subject: QUE FALTA FAZ UM VERDADEIRO SERVIÇO DE INFORMAÇÕES NACIONAL


Que falta faz um verdadeiro serviço de informações.
Augusto Cesar
Reportagem publicada na Revista Veja em 09/07/1997, vale apena recordar.

Memórias do SNI
O general Medeiros faz revelações sobre o governo
Figueiredo, a Guerra das Malvinas e o Suriname

Paulo Moreira Leite

Criado em 1964, num edifício onde funcionava a antiga Casa da Borracha, na esquina da Rua Uruguaiana com a Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio de Janeiro, o Serviço Nacional de Informações, SNI, foi uma das mais faladas e menos conhecidas repartições do regime de 64. Pelo SNI passaram dois presidentes da República -- Emílio Médici e João Figueiredo --, um general de imensa influência política -- Golbery do Couto e Silva --, além de oficiais que tiveram um papel de destaque na condução do regime militar. Extinto em 1990 pelo recém-empossado Fernando Collor, que criou a Secretaria de Assuntos Estratégicos, até hoje o SNI mantém a couraça de mistério que cercou sua existência. Isso se deve, em grande medida, à parcela efetiva de poder que acumulou no passado, chegando a possuir a estatura de ministério, condição raríssima em qualquer país do mundo. Boa parte do mistério que ainda cerca o SNI se deve ao fato de que seus chefes sempre guardaram segredo sobre sua atividade. Eles não deram entrevistas, não abriram seus arquivos nem sequer escreveram livros de memória. O general Octávio Aguiar de Medeiros, chefe do SNI de 1979 a 1985, resolveu falar.


Foto: Carlos Namba
O general Medeiros: chefe do Serviço com status de ministro
Em 1993, diante de dois pesquisadores, um ligado à Universidade de Brasília, o outro à Universidade Federal Fluminense, o general Medeiros deu uma detalhada entrevista sobre sua atividade. Chefe do SNI em seu apogeu, quando seus efetivos, entre analistas, agentes operacionais, estudantes e colaboradores somavam 3.000 pessoas, Medeiros falou de um órgão envolvido em assuntos ligados à sua área de origem, como temas políticos e questões diplomáticas, mas revelou a atuação do serviço em outro terreno -- a criação de empresas na área de informática e até sua intervenção pessoal para garantir a construção do Túnel Gávea--São Conrado, no Rio, desfazendo um conflito em que se envolviam ecologistas, estudantes e diretores da Pontifícia Universidade Católica. Procurado repetidas vezes por VEJA para uma entrevista, o general Medeiros recusou qualquer contato. Abaixo, os principais trechos de seu depoimento, mantido em segredo até a semana passada:

O Plano Americano
para entrar no Suriname
"A história do Suriname começou quando o embaixador americano pediu ao general Figueiredo uma reunião secreta. Por volta de 9 horas de um domingo, chegaram à Granja do Torto o embaixador, um assessor do presidente Ronald Reagan, Clark, e um oficial da CIA, Claridge. Com fotos aéreas, relataram o que estavam vendo no Caribe, preocupados com a entrada do comunismo na Nicarágua e com a influência cubana no Suriname. O senhor (Desi) Bouterse, presidente do Suriname, não era visto com bons olhos pelos EUA e estava se chegando muito para o lado de Cuba. Mostraram inúmeros detalhes e fizeram uma proposta que o presidente Figueiredo não podia aceitar: eles iam programar uma manobra naval nas costas do Suriname e pediam ao Brasil um batalhão de pára-quedistas que, junto com a ação deles, descesse e tomasse o Aeroporto de Paramaribo. Foi um choque, pois jamais pensamos em qualquer operação desse tipo. O Figueiredo começou a dar explicações: 'Olha, os senhores têm de entender que a situação do Brasil é difícil, temos uma opinião pública, não podemos sacrificar a imagem do governo, há essa grita toda contra a revolução...' Eu solicitei ao general Figueiredo uma reunião privada, entre nós. Fomos para o gabinete e sugeri: 'Presidente, não podemos simplesmente dizer não para os Estados Unidos, aliado tradicional, e não estamos em condições de ver nossas exportações embargadas'. Sugeri que em vez de participar da invasão com um batalhão de pára-quedistas, fizéssemos um esforço com Bouterse, oferecendo ajuda técnica, econômica, material, em troca do afastamento dos cubanos. Voltamos aos americanos. O embaixador e o Clark conferenciaram e acharam que seria muito bom. Ficou acertado que suspenderiam a invasão e nós íamos fazer um esforço para entrar no Suriname com nossa influência. Deram um prazo: 'Se não conseguirem num prazo curto, aí uns dois ou três meses, vamos ter de entrar. Não podemos permitir o aumento da influência comunista no Caribe'. Então, montou-se a operação Venturini. Ele foi para lá num avião e fez a negociação com o Bouterse. Nós levamos no avião um grupo de combate, caso aprisionassem o Venturini. Ele teve grande sucesso. Prometeu pessoal técnico, mão-de-obra, inclusive urutus e embarcações. Prometemos a abertura de escolas e facilidades de ensino para oficiais. Havia um coronel do SNI, que era uma sumidade em eletrônica e telecomunicações. Ele foi com uma equipe, instalou estações de rádio e montou um sistema de comunicação. Montamos uma escola de português que logo encheu de alunos. Esse programa foi uma manobra inteligente, aceita e aplaudida pelos Estados Unidos."

Explicação -- O atual ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampréia, era o encarregado de negócios do Brasil em Paramaribo no início de 1983, quando o general Danilo Venturini, secretário do Conselho de Segurança Nacional, passou três dias naquele país em negociações com Bouterse. Lampréia serviu de intérprete, participando de todas as conversas nessa condição. Sob o governo de Ronald Reagan, os EUA tinham uma diplomacia bastante agressiva diante de governos esquerdistas na América Latina, chegando, em outubro de 1983, a invadir a ilha de Granada, no Caribe. Medeiros nada comenta sobre o que aconteceu em Granada, mas na Agência Central do SNI, cujo chefe era o general Newton Cruz, os analistas foram encarregados de examinar a possibilidade de participar da invasão da ilha, chegando a receber filmes da vida local, produzidos pelo serviço de inteligência americano. Procurado por VEJA, o general Venturini confirma os detalhes da operação em Paramaribo, mas faz uma ressalva importante: nega que, na reunião do Torto, os emissários dos EUA tenham feito um convite para o governo brasileiro participar da invasão do Suriname. "Se isso aconteceu, eu não soube", diz Venturini.

No SNI nunca entrou pé
rapado, só gente boa
"O SNI não era uma máquina assustadora. Jamais entrou um preso no SNI. Jamais o SNI fez um interrogatório numa prisão. Os órgãos que executavam a repressão valiam-se de informações nossas porque tínhamos facilidade em obtê-las, fazíamos acompanhamento de organizações comunistas, do próprio Luiz Carlos Prestes. Mas, no momento de executar, era a polícia das Forças Armadas. Jamais metemos a mão numa coisa dessas. Noventa por cento da atividade do SNI era na área econômica, na administrativa, no auxílio aos ministérios, acompanhamento de projetos e casos de corrupção. O SNI tinha de informar o presidente da República a respeito de tudo. Sua função era produzir informações para o presidente tomar decisões. Como se fazia a avaliação da fonte se alguém dizia que fulano era corrupto, comunista ou bêbado? Era fácil. Com um acompanhamento, ligações com pessoas que tivessem contato, que quisessem colaborar, até chegar a provas concretas. Havia muita denúncia falsa, mas depois que pega certa prática você sente o que é falso. O SNI, modéstia à parte, só pegava gente boa, nunca entrou um pé-rapado, o oficial sabia que era um prêmio. O SNI cresceu em termos de orçamento. No princípio, nós éramos extremamente pobres. Umas quarenta, cinqüenta pessoas, de chefe a faxineiro. Depois foi se ampliando, e entre tudo, contando a Escola Nacional de Informações, chegamos a umas 3.000 pessoas, no Brasil todo. No princípio havia predominância de militares. Nos últimos anos, se tivéssemos 30% de militares era muito. Até curso de economia funcionou lá dentro. Tudo voltado para a busca de informações. Nós fizemos um seminário para grandes empresários, veio o pessoal da Volks, da GM, e eles ficaram alucinados. À medida que o país progredia e a indústria se agigantava houve problemas de espionagem industrial. Cada um tratou de criar um órgão interno correspondente. Hoje, todas elas têm. Só nós destruímos o nosso. Na época do Sarney, o SNI esvaziou-se bastante, mas aí seu Collor veio. Ele tinha medo de que nos arquivos do SNI houvesse coisas contra ele. Corrupção, principalmente. (A extinção do SNI) foi um ato extremamente demagógico e de autoproteção, porque, se o SNI existisse nos moldes em que existia no tempo do Figueiredo, jamais teria havido um caso PC."

Explicação -- É apenas delírio imaginar que o SNI fosse um santo remédio contra a corrupção. Mas o Serviço chegou a mostrar uma eficiência relativa em algumas situações."Eles eram muito eficazes para apanhar fiscais de renda que estavam recebendo bola", lembra um ministro da Fazenda. "Faziam escuta telefônica, seguiam o sujeito, armavam o flagrante e depois o demitiam, sem escândalo." Ao desaparecer, o SNI guardou segredo de sua lista de analistas, agentes e informantes. Um dos poucos casos identificados é o do coronel Sebastião Curió, contratado pelo SNI como veterano do combate à guerrilha do PC do B no Araguaia. (Curió entrou para o SNI quando estava na reserva. No Araguaia, era oficial da ativa e pertencia ao Centro de Informações do Exército, CIE.) Curió foi o homem do SNI em Serra Pelada, quando organizou garimpeiros, e ainda foi o agente que negociou com a primeira liderança sem-terra do país, acampada em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul, em 1981. Com recursos do SNI, uma comitiva de sem-terra viajou de avião pela Bahia e depois foi até Mato Grosso para examinar locais onde as famílias poderiam ser assentadas. Por problema de falta d'água, a propriedade da Bahia foi recusada e eles acabaram assentados em São Lucas do Rio Verde -- nesse lugar, nasceu uma pequena cidade. Outras autoridades coloboravam com o Serviço sem vínculo empregatício. Em São Paulo, um dos informantes mais ativos era o delegado Romeu Tuma, que estava no Dops, na época. Tuma era considerado excelente fonte de informação entre os políticos em geral, mesmo de esquerda, como Luís Inácio Lula da Silva. Tuma tinha grande intimidade nesse meio, e graças a ele chegavam à agência central do SNI, em Brasília, informes sobre encontros descontraídos, fora de expediente, em que Lula e seus amigos conversavam, bebendo cerveja e cachaça. Em 1982, quando o MDB ganhou as eleições com Franco Montoro, Tuma corria o risco de ficar marginalizado. O SNI foi um dos padrinhos de sua reciclagem profissional, que começou por uma nomeação para a Polícia Federal. O Serviço ficou grato pelo fato de Tuma ter impedido que a oposição tivesse acesso ao arquivo de fichas de adversários do regime mantido pelo Dops -- quando o MDB venceu as eleições, ele transferiu o fichário para a Polícia Federal.

Aureliano ficou pálido e disse:
"Vão me sacrificar"

Foto: Carlos Namba
Figueiredo e Aureliano: o vice quis lançá-lo candidato à sucessão
"No dia em que o João teve um infarto, eu marquei uma reunião com todos os ministros, para as 7 ou 8 da noite, na minha suíte no Othon (Palace Hotel, no Rio de Janeiro). Telefonei para Brasília, ao Newton Cruz (chefe da agência central do SNI), e disse: 'Você vai pessoalmente à casa do doutor Aureliano Chaves, conta o que aconteceu e pede a ele que esteja aqui numa reunião no Othon às tantas horas da noite'. Discutimos o problema e chegamos à conclusão evidente -- nem eu era besta de propor o contrário -- de que o doutor Aureliano assumiria o governo enquanto o João estivesse impedido. Mas só podíamos fazer isso depois que o hospital desse o laudo médico. Depois que tudo estava decidido, mandamos chamar o Aureliano. Ele entrou pálido, porque estavam ali os ministros militares, e disse: 'Vão me sacrificar'. Estava achando que era o Pedro Aleixo 2 (Pedro Aleixo foi o vice de Costa e Silva impedido de tomar posse quando o presidente ficou doente, sendo substituído por uma junta militar). Não sei por que cargas-d'água nessa noite eu estava com a iniciativa toda, expus o caso ao doutor Aureliano e disse: 'O senhor vai assumir a Presidência da República'. Aí ele disse assim: 'Eu ia para Três Pontas, mas não vou mais. Vou assumir amanhã mesmo'. Eu disse: 'O senhor não deve assumir amanhã porque há esse problema: nós temos de ter um documento oficial, um laudo médico. Se eu fosse o senhor, pegava o seu avião, ia para Três Pontas. Sexta ou sábado o laudo deve estar pronto. Vamos marcar para segunda-feira'. E assim aconteceu, tranqüilamente. Corre aí que o João e o Aureliano tiveram alguns problemas. É verdade. Mas foram de ordem política. Eu entrei para a história jornalística como tendo arquitetado um golpe contra o Aureliano. Ele era meu amigo. Foi a única pessoa, nesse governo João Figueiredo, que me propôs ser candidato a presidente da República. Rechacei imediatamente. O João estava na China e o Aureliano assumiu interinamente. Eram 7h30 da noite, ele me chamou no gabinete para dizer que o quadro era muito feio, muito triste com disputa entre candidatos, que a única solução era todos eles renunciarem e eu ser apresentado como candidato à Presidência. Foi a única pessoa que teve coragem de me falar isso. Palavra de honra. Escrevi uma carta, no dia seguinte. Quando o João chegou, botei no bolso dele, para ler em casa."

Explicação -- O infarto de Figueiredo, em 1981, paralisou o governo e contribuiu para tumultuar a sucessão, antes mesmo da campanha pelas diretas já. Três candidatos disputaram o apoio do governo na esperança de vencer no colégio eleitoral: além de Paulo Maluf, os ministros César Cals e Mário Andreazza. Medeiros sempre foi apontado como autocandidato -- a novidade, aqui, é Medeiros dizer que seu cabo eleitoral foi o vice Aureliano Chaves.

Como o serviço fez o túnel
Gávea-São Conrado

Foto: Ricardo Chaves
O Túnel Gávea-- São Conrado: o Serviço entrou em campo para pacificar a PUC
"Quem é que sabe que o Túnel Gávea--São Conrado foi uma operação do SNI? Ninguém. (Havia) um problema enorme ali, aquela Marquês de São Vicente permanentemente entupida -- minha mãe morava perto dali --, os moradores se queixando e fazendo pressão para abrir o túnel. A PUC não deixava, dizia que isso, que aquilo. Um dia o general João me chamou, disse: 'Olha, Medeiros, não agüento mais aquele negócio do túnel. Você resolve essa parada para mim?' Eu disse: 'Com carta branca, eu resolvo'. 'Não, faz o que você quiser.' Aí, fui. Primeiro fui para o Rio estudar o problema, tive inúmeras reuniões na agência do SNI com o governador Chagas Freitas, seu secretário, chamei a PUC, os diretores da PUC, o presidente do DCE da PUC, tudo isso foi ouvido, falado. Apresentaram um projeto pronto em que a PUC não sofreria nada, porque iam colocar uma cobertura, replantar não sei quantas mil árvores. Eles ficaram felicíssimos. Tudo isso foi feito sob coordenação nossa. Nós não pegamos um tijolo, mas coordenamos tudo."

Explicação -- A construção do Túnel Gávea--São Conrado, uma das grandes obras de engenharia civil do Rio de Janeiro, foi um pesadelo dos governadores daquele Estado. Pelo local passavam 40.000 automóveis nas horas de pico, o que significava congestionamento permanente pela manhã, na hora do almoço e especialmente no fim da tarde. Após muitas idas e voltas, o comandante Adir Veloso, que era o secretário de Transportes do governo Chagas Freitas, começou a tocar a obra. Estava sob pressão de ecologistas, de estudantes e da própria reitoria da PUC. "De repente, surgiu até um decreto embargando a construção", lembra Adir Veloso. "Nós já não sabíamos mais o que fazer." Convidado para ir a Brasília receber uma condecoração militar, Veloso não desperdiçou a chance. Encerrada a cerimônia, queixou-se a Figueiredo. O presidente determinou que fosse conversar com o general Medeiros.

Empresa montada pelo SNI
fazia cartões de banco
"O Delfim (Delfim Netto, ministro do Planejamento) tinha pavor de mim, embora ficássemos sendo grandes amigos. Ele atendia tudo: 'Ih! Lá vem o Medeiros.' A turma da Petrobrás, Vale, que se via com problemas de verba, corria para mim para pressionar o Delfim, que acabava cedendo, porque eu tinha argumentos. Delfim é um sujeito capaz. Podem falar mal dele, mas eu o acho capaz. A Escola Nacional de Informações descobriu a fragilidade da máquina que usávamos no Exército e no Itamaraty. Era muito fácil para quem havia fabricado (as máquinas) quebrar o sigilo (das comunicações). Fizemos um programa para fabricar uma máquina melhor. O Itamaraty entrou com a contratação de técnicos especializados em eletrônica. Nós não tínhamos dinheiro para isso, eles tinham. Montamos o projeto Prólogo. Em dois meses já tínhamos o protótipo da primeira máquina codificadora inteiramente fabricada por nós, com uma grande vantagem sobre as estrangeiras, porque tinha dez chaves para ser combinadas. Até hoje é praticamente impossível decifrar. Isso foi a célula máter do que se vê hoje funcionando nos bancos. Dessa máquina os bancos compraram milhares. O Itamaraty comprou e equipou todas as embaixadas com essa máquina. Como a Prólogo não podia vender somente para o governo, eu consegui mudar o objeto social da empresa e começamos a trabalhar para outras firmas. Nesses postos de gasolina BR há muitas máquinas eletrônicas fabricadas por nós. Se olhar no cantinho está lá, Prólogo."

Explicação -- A Prólogo foi uma entre várias empresas montadas pelo Serviço na época. Surgiu sob proteção da reserva de mercado na área de informática e sob cobertura de créditos de bancos oficiais. Foi um sucesso enquanto a proteção especial durou. Fechou as portas, atolada em dívidas, quando os créditos secaram e a economia se abriu para a concorrência externa.

Figueiredo não quis falar com
Galtieri nem por telefone
"O senhor Galtieri (Leopoldo Galtieri, presidente da Argentina que iniciou a Guerra das Malvinas) era meu amigo, um sujeito aberto e franco, de expansões italianas, aqueles arroubos, numa situação difícil por causa da guerra suja. Eles foram violentos, raro o dia em que não aparecia um corpo boiando nas praias do Uruguai. Galtieri resolveu levantar uma bandeira nacionalista, a reconquista das Malvinas. Entrou nessa trilha e não pôde mais sair, porque o pessoal se empolgou, inclusive a população civil. Eles não souberam avaliar o poderio da Inglaterra e também acharam que os Estados Unidos poderiam ficar ao lado da Argentina, quando têm ligações íntimas com os ingleses. Mas aí tomaram conta das Malvinas, a Inglaterra começou a se preparar para a luta, o Galtieri começou a ficar preocupado. Certo domingo, eu estava em casa e o João me telefonou muito aborrecido: 'Medeiros, o Galtieri já telefonou duas vezes lá para casa. Quer falar comigo. Só pode ser o problema das Malvinas, e eu não quero me envolver nisso de jeito nenhum, porque ele vai fazer pressão. Não sei o que faço, porque não quero falar com ele nem pelo telefone'. Ele não disse, mas pelo raciocínio o Galtieri ia fazer pressão para a adesão, para fornecimento de armamento. Eu disse: 'João, você quer que eu vá falar com o Galtieri? Eu vou. Não custa nada. Ele é meu amigo. Nosso amigo'. E o João disse: 'Puxa, Medeiros, se você fizer isso, vai ser uma mão na roda. Vai lá, vê o que ele quer, amansa o Galtieri e volta'. Pousamos (o general Newton Cruz acompanhou Medeiros na viagem) lá às 11 da noite, recebidos pelo general Martinez, do SNI deles: 'O presidente o está esperando na Casa Rosada à meia-noite'. Meia-noite em ponto eu entrei. Galtieri estava fardado impecavelmente, barbeado, como se tivesse saído do banho, uma perfeição. Deu-me um abraço: 'Medeiros, imagine, eu telefonei para o João só para conversar, contar as minhas mágoas, ele não pôde atender e manda o melhor amigo falar comigo. Estou engrandecido'. Gesticulava e começou a falar da guerra, que precisava dar uma satisfação ao povo, que a Inglaterra tinha roubado o território. Perguntei: 'Mas, general Galtieri, o senhor não tem receio de envolver a Argentina num problema grande com a Inglaterra? Ela está se preparando para uma expedição...' Ele disse: 'Vamos derrotá-los. Jamais levantaremos a bandeira branca'. Dizia e se levantava: 'Jamais. Jamais'. Conversei um pouco e vim embora. Ele não pediu nada. Mais tarde vieram pedir, mas já quase no fim da guerra. Cometeram erros muito grandes. Em vez de pegar a tropa de elite para segurar os primeiros embates, foram pegar -- isso contado por eles mesmos -- soldados recém-incorporados das províncias do norte, inexperientes, tendendo para o indígena. A desculpa: não queriam que fossem trazidos corpos para Buenos Aires, feridos de guerra, baixas de combate, e que as famílias se enraivecessem com aquilo. Perguntei a um oficial: 'Mas por que vocês mandaram esses soldados para lá?' Ele disse: 'Ah, porque eles são bons de tiro, de faca, de punhal'. Então, contra os ingleses, que tinham coletes à prova de bala aquecidos a pilha, capacetes formidáveis, óculos de visão noturna, botar gente que luta de faca! Depois nos pediram uns aviões, e o João conseguiu que o Délio (Délio Jardim de Mattos, ministro da Aeronáutica) aprontasse uns doze ou catorze Xavante, que já estavam saindo de uso na Força Aérea, caças a jato, os primeiros fabricados por nós. Délio nem cobrou porque os aviões iam ser sucateados mesmo."

Explicação -- Iniciada em abril de 1982 e encerrada em junho do mesmo ano, a Guerra das Malvinas produziu mais de 1 000 mortos e a desmoralização da ditadura militar argentina. O governo brasileiro teve a posição possível na época. Alinhou-se discretamente com o vizinho de fronteira, mas evitando um compromisso excessivo que trouxesse retaliações pesadas.

Os dois malucos fizeram
a bomba do Riocentro
"O caso do Riocentro foi dramático. Era quase meia-noite quando eu soube que tinha explodido uma bomba lá. O chefe da agência central ligou: 'Olha, Medeiros, infelizmente, com tudo o que nós fizemos para evitar, explodiram uma bomba. Não sabemos quem foi... Devem ter sido aqueles loucos mesmo'. Tudo faz supor que foram elementos individualistas, revoltados. Quando o Exército abriu inquérito, eu não pude mais me envolver. O Figueiredo depois chegou a dar uma entrevista dizendo que quem fez o Riocentro foi o CIE. Não foi. Tenho certeza absoluta. Ele nunca soube quem foi que fez. Eu soube? Por suspeição. Foram aqueles dois malucos mesmo, o Rosário (sargento Rosário), o que morreu lá, e aquele outro (capitão Wilson, hoje tenente-coronel). Dois bobalhões. Agiram por iniciativa deles. Isso acontece. Não se vê aí todo dia policial seqüestrando gente?"

Explicação -- O Riocentro foi o infarto político do governo Figueiredo, que nunca se recuperou da explosão. Os comandantes militares construíram uma farsa jurídica para acobertar responsabilidades e fizeram um inquérito em que se concluía que o atentado fora obra da esquerda. Depois do atentado, a cúpula do SNI realizou discretos movimentos pelo país. O general Newton Cruz marcou um encontro no Rio de Janeiro com militares de baixa patente apontados como suspeitos de preparar outros atentados. A reunião, tensa, ocorreu num pequeno hotel, a poucas quadras da Praia de Copacabana.

Com reportagem de Leonel Rocha, de Brasília,
e Joaquim de Carvalho, de São Paulo

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